Semquenempraque

Thursday, April 05, 2007

Um pai, uma filha e uma câmera

Ali estava uma câmera de filmagem, diante de um pai e uma filha.
O lugar: o campeonato mundial de esportes aquáticos em Melbourne, na Austrália.
A notícia que correu os jornais de todo o mundo nas últimas semanas fala da agressão que esse pai submeteu à sua filha por ela não ter se classificado para as semifinais dos 50 metros costas.
Após o insucesso, o que se flagrou foi um pai e uma filha discutindo e ao mesmo tempo tentando se entender. Quando observamos as imagens vemos que os dois se esforçam para se olharem, apesar da força dos sentimentos "não revelados" impediram deles terem apenas uma conversa "civilizada".
Penso sobre o que havia nestas imagens para que a repercussão deste evento ganhasse a proporção mundial. Parece que para além das nacionalidades de ambos (ucranianos) e da ocasião ter acontecido em um país tão distante como a Austrália, havia algo ali que falava sobre a experiência de cada um. De cada filho, de cada pai.

Afinal, todos nós tivemos alguém que foi um pai para nós, e que invariavelmente, tivemos alguma discussão do tipo: "você não fez aquilo que eu esperava de você!"; ou "você não deixa eu namorar com fulano, não deixa eu sair para tal lugar...". Enfim, são frases esperadas de uma relação tão complexa quanto é a relação entre pais e filhos - frases que provavelmente foram ditas por aquele pai e aquela filha em Melborne.

Mas porque a repercussão dessa discussão se tornou tão grande? Será que se trata apenas de uma questão de agressão física? Tal evento nos possibilita pensar sobre o que é um pai, o que um pai deseja? Até porque o incidente parece ter origem no fracasso da filha em não ter conseguido a classificação que o pai tanto almejava.

A própria história daquele pai pode nos dizer algo sobre isso. Tal como a filha de 18 anos, ele também foi um atleta de natação. No final dos anos oitenta chegou a ganhar uma medalha nas Olimpíadas de Seul. Naquela ocasião o então nadador tinha 19 anos, mesma época em que teve a sua filha nadadora. Será uma questão de coincidência?

O psicanalista francês Jacques Lacan trás em sua teoria um conceito intitulado Nome-do-pai. Segundo ele, um pai é aquele que nomeia, aquele que dá o lugar simbólico que o filho irá ocupar no mundo, sendo que esse lugar sempre tem algo haver com aquilo que faz falta. Vale lembrar que em psicanálise, falta costuma ser sinônimo de desejo. O pai não é necessariamente, o biológico; muitas vezes é um parente próximo, ou mesmo a própria mãe. Nesse caso se diz que a função paterna foi exercida pela mãe, pelo tio, pelo avô.

Ao vermos o pai e filha brigando na beira da piscina do estádio, podemos pensar sobre o lugar que essa filha ocupava no desejo daquele pai para que se manifestasse tanta insatisfação. Se este pai não está mais na competição como nadador, ele permanece competindo através de sua filha. Ao fracassar, sua filha demonstra não ser apenas um objeto de realização do pai; com isso ela pôde contrapor o pai e assim, poder existir para além do desejo dele. Quando falhou ela se colocou como sujeito, e isto ficou patente aos olhos de todo o mundo. Ela pôde ser vista como Kateryna Zubkova, e não simplesmente como “filha de...”.

O interessante é observar que se não houvesse o desejo do pai de que ela fosse a campeã mundial, ela não poderia contestar essa grande idéia e existir a partir do seu próprio desejo. Só podemos desejar algo próprio a partir do desejo do Outro.

Ironia do destino: após a comoção geral devido à filmagem da discussão entre ambos; pai e filha saem de mãos dadas do tribunal que o proibiu de se aproximar menos de 200 metros de sua filha. Ao sair do tribunal a moça participou de uma das competições e ganhou em primeiro lugar.

Como se vê, não há lei ou mídia que possa legislar sobre o desejo. Para aquela filha o homem que a agrediu nunca deixou de ser o seu pai.